Era a última sexta feira do mês de março de 2012. Na quarta feira anterior eu atravessava uma rua quando percebi algo estranho nos meus olhos. Era como o movimento que eu fazia quando brincava de ver os livros com imagens em 3D. Mas era involuntário, incontrolável. Naquela semana eu tinha muitos compromissos na universidade onde trabalho, entre eles a coordenação de uma aula inaugural do Mestrado. A aula seria em uma sexta feira, mas o professor convidado pediu que fosse transferida para a quinta feira. Era tenso! A secretária via as transferências de voos, hotéis, espaços no auditório, comunicação da mudança e eu não sabia se tudo aquilo ia dar certo e meus olhos resolveram brincar comigo. E tudo aquilo no meio de um pico de estres que vinha se acumulando no trabalho nas férias e durante o carnaval… sem parar. Na quinta feira tudo deu muito certo, com exceção do fato de que eu não podia olhar para o fundo do auditório porque a imagem das cabeças das pessoas se duplicavam e a imagem duplicada também se duplicava até chegar no teto. Tontura, enjoo e medo de que alguma coisa desse muito errado. Então eu olhava para pontos mais próximos. A noite terminou sem mortos e feridos e na sexta muito cedo fui visitar meu oftalmologista.
A essas alturas eu quase não abria os olhos, não enxergava em uma distância menor que alguns dedos e estava muito assustada. Descobri que não havia nada em meus olhos que mudasse o grau já existente. E o médico me indicou a emergência. E lá… exames, exames e exames… Mas eu acreditava que ia voltar pra casa no final da tarde, buscar meu filho na escola (na época com 5 anos) e tudo ia ficar bem. Mas o tempo foi passando e eu soube que minha ressonância tinha indicado algumas lesões e que deveria esperar o neurologista voltar. Aqueles minutos foram uma eternidade. Eu pensava em meu filho na escola. Meu marido ligou para uma amiga, montaram um programa divertido para o pequeno naquela noite. Ao modelo “A vida é bela” essa questão estava resolvida e meu marido foi busca-lo na escola junto com essa amiga, que era psicóloga da escola, mãe de um amiguinho dele e minha amiga de trabalho.
Fiquei sozinha deitada naquela maca, óculos escuros e muitos pensamentos em minha cabeça. Lembrei que já havia passado sete anos desde a descoberta de algumas lesões e da constatação de alguma doença desmielinizante que nunca ficou comprovada. Lembrei que uma vez um médico em Florianópolis sugeriu a Esclerose Múltipla e ficamos muito desestabilizados na época. Mas a dúvida o fez me encaminhar para uma médica renomada no assunto e ela descartou a possibilidade. E se ela descartou, não havia duvidas! Lembrei que fiquei um ano fazendo exames, visitando diferentes médicos e nenhum sucesso até que engravidei e tudo sumiu. Mas eu percebia que alguma coisa não estava bem, uma dormência aqui outra ali, uma tontura aqui outra ali, muita dor de cabeça e as vezes eu voltava ao médico e o estres era sempre o centro da questão. Eu sentia que eu perdia tempo indo ao médico e era melhor tocar a vida sem pensar nisso e investir em terapias complementares. A fadiga era explicada! Afinal quem não se cansa trabalhando em tempo integral, com a pretensão de ser a super mãe, a super mulher, a super profissional? Nesse tempo eu já havia sido macrobiótica, vegetariana, já tinha feita acupultura, yoga, homeopatia, massagens… mas a fadiga sempre voltava. Sabendo que alguma coisa estava errada, tive medo de ser internada e entrei em desespero!
O neurologista chegou e me informou que os exames mostraram algumas lesões no meu cérebro e coluna cervical e que eu estava sendo internada para investigações. Eu estava com muita raiva porque aquelas lesões não eram novidade e nenhum médico chegava a lugar nenhum! E eu disse chorando para o médico (que depois vim saber que era meu colega na universidade): “Eu tenho uma vida lá fora, tenho um filhos de 5 anos, não posso ficar aqui. Eu prometo que faço todos os exames que você quiser e trago aqui pra você ver depois, mas não me interna. Quantos médicos já viram meus exames? Para depois dizer que é estres? Não pare a minha vida para me dizer que tenho estres, por favor!” E ele quase como um pai dizendo um bom “não” para um filho, mudou o tom de voz e disse: “Você não pode chegar aqui com visão dupla e ganhar alta, sair por aí duplicando as imagens! Não no meu plantão! E até que os seus exames me provem o contrário você tem Esclerose Múltipla e vai ficar aqui, sim! Porque você pode ficar cega e eu não vou deixar! É exatamente porque você tem uma vida lá fora, porque você tem um filho que você vai ficar aqui”. Engoli meus argumentos! Entendi que era sério! O enfermeiro veio iniciar minha primeira pulsoterapia, que naquele momento eu não imaginava o que era. Lembro que chorei muito e liguei para minha mãe. A coitada do outro lado da linha, lá no estado de São Paulo, não tinha o que fazer… não era racional, ela não tinha de fazer nada, eu tinha de falar com minha mãe! Uma enfermeira veio tentar me consolar e me dizer que com Jesus eu seria curada, mas eu senti muita raiva e pedi para ficar sozinha. Entendi que a rispidez do médico naquele momento foi quase pedagógica. Eu estava cheia de argumentos, raiva e completamente sem ideia da situação. Mas agora eu precisava ficar sozinha! Foram alguns minutos, mas foi como se eu sentisse o “desamparo” com o qual nascemos e morremos. Aquele momento que é apenas eu comigo mesma… um desamparo insuportável! Depois o médico voltou e, com outro tom de voz, me explicou que eu teria uma equipe de médicos, pesquisadores, de alto nível a minha disposição e me prometeu que eu não sairia dali sem um diagnóstico.
Fiquei os cinco dias internada e conheci outros médicos da equipe. Fiz mais exames, muitos outros. Meu marido voltou naquela noite, ganhou uma pulseira de acompanhante e recebeu instruções para não me deixar andar sozinha. Eu era uma paciente com risco de quedas e tinha uma pulseira vermelha. Eu não entendia tanto cuidado, mas depois a corticoide foi fazendo seus efeitos. Já instalada no quarto, eu voltei a enxergar, mas sentia dores em todas as articulações, retive muito líquido e engordei cinco quilos naqueles cinco dias. Atendendo a meu pedido, meu marido levou meu computador e meus livros para o quarto e continuei trabalhando. Minha reação foi não aceitar a intensidade do quadro e continuar minhas atividades. Naquela semana eu trabalhei muito e meu filho vinha me ver a noite! A negação iniciou cedo! Eu fingia que não era sério e não entendia tanto cuidado! Sinto grata pelo acolhimento, mesmo assim! O carinho de todos os plantonistas, o residente, os enfermeiros, a fisioterapeuta que veio me acompanhar nas primeiras caminhadas e o médico que me acompanha até hoje. Meu diagnóstico foi confirmado e foi o Dr. Marcus Vinícius Magno Gonçalves que veio me contar… com todo o carinho do mundo! Essa humanidade fez toda diferença!
Minha primeira consulta foi um dia depois que saí do hospital… lá fomos, meu marido e eu ouvir mais sobre a EM, tentando entender tanta informação… e ali iniciaram os procedimentos do prognóstico… solicitação do remédio, encaminhamento com a psicóloga e muito aprendizado. Não gosto muito de me lembrar daquele ano… 2012 ainda me faz chorar.